Ela sempre soube que era diferente. Desde cedo sentia-se deslocada, como se houvesse um descompasso entre o que carregava por dentro e o que via do lado de fora. Era uma menina pequena, mas já intuía que sua imaginação abrigava muito mais vida do que o mundo podia enxergar.
Quando a professora chamava a turminha para a soneca da tarde, depois do lanche, ela permanecia desperta, atenta ao feijão crescendo no algodão, ao balé meticuloso das formigas, a paciência das aranhas. Silenciosa, mas cheia de perguntas.
Aprendeu a ler cedo e leu como quem respira. Suas habilidades de leitura ultrapassavam de longe as motoras, por isso trocava as aulas de educação física pelos diálogos silenciosos da biblioteca.
Na infância e adolescência, seus hiperfocos eram mapas claros de sua mente inquieta: formigas, Bruce Lee, poesia, música clássica, artes plásticas, constelações, o universo, astrologia, numerologia, aromaterapia, nutrição, atividades físicas, finanças, Jung, psicologia, budismo, filosofia, cinema. Tudo que despertasse sua curiosidade virava estudo intenso, quase obsessão.
Desde os 11 anos escrevia poesia, crônicas, histórias. Desde sempre era introvertida. Passava tardes e noites no quarto, lendo, escrevendo, ouvindo música, o que irritava profundamente o pai, que insistia para que ela “saísse e fosse normal”. Mas ela sabia que não era. E, aos 14 anos, essa certeza já estava cristalizada. Enquanto os colegas pareciam se contentar com interesses banais e conversas superficiais, ela sentia. E sentia muito. Carregava um coração que se recusava a ser raso.
Suas lembranças tinham cheiro, sabor, textura. Recordava vividamente o calor ameno do sol entrando pela janela aos domingos, a flor bebendo chuva no jardim, o aroma doce do chá invadindo a casa. A memória sempre foi sua aliada e, às vezes, sua prisão. Bastava prestar atenção, ou nem isso, para que tudo permanecesse: as palavras que ouviu, a página exata de uma citação, o quadro-negro com a caligrafia do professor. Os encontros que ficavam marcados como brasa quente na pele. Difíceis de esquecer.
A memória era bênção e maldição ao mesmo tempo: não a deixava esquecer o que queria, mas guardava com precisão tudo o que precisava. Assim como sua percepção aguçada, que transformava tudo em marcas profundas. Nada nela era banal. Essa intensidade que não entendia bem, que amedrontava os outros, também era ela.
Quando estava em um lugar, era invadida por tudo: a risada de uma criança ao fundo, o cheiro de café, a textura da roupa, a cor da pele de alguém, o desenho dos olhos, a curva suave de um sorriso, o tom exato de uma voz. Tudo grudava nela, na pele, nos ouvidos, nos olhos, na memória.
Na sua vida, as coisas permaneciam tempo demais. Não porque quisesse, mas porque certas dores insistiam em durar mais que o instante em que se revelaram. Ela ficava, tentando entender de diferentes ângulos aquilo que, para os outros, parecia simples. Nunca se contentou com respostas óbvias. Sabia que havia mais. Mais tarde descobriria que isso era seu pensamento rizomático: enxergava camadas e camadas. Onde muitos viam apenas preto e branco, ela via nuances infinitas de cinza.
Nunca tentou se encaixar. Não sabia como. Observava o mundo em silêncio, sentia muito, percebia muito, pensava demais. Inquieta por dentro, tranquila por fora.
Depois dos 30, talvez, sentiu-se um pouco mais em casa, no corpo, na mente, na vida. O estranhamento do mundo e de si deu lugar a uma sensação de pertencimento (uma casa que ela mesmo construiu dentro de si). Talvez, os anos de terapia tivessem feito efeito, finalmente. Talvez, a vida, enfim, estivesse levemente alinhada com quem ela sempre foi.
Era diferente. E, no fundo, sempre soube disso... mas muitos ainda não entendiam e era cansativo se explicar.