Ele acorda sem querer acordar. Vira para o lado, não quer levantar. Então lembra que não há opção. As contas chegam todo mês. É preciso continuar levantando. Lava o rosto displicentemente. Vai para a cozinha. Passa o café. Um pouco de alegria no primeiro gole. E algo nele quase agradece por estar vivo. Sentir. O café forte, sem açúcar, o faz sentir. Mas logo os pensamentos são tomados pelo dia cheio. Os clientes que vão chegar na loja. A meta mensal que ele precisa bater para não viver só com o mínimo. Toda aquela performance que ele tem que fingir. A educação que precisa manter. Fica exausto só de pensar que é preciso, mesmo assim, seguir adiante. Pra onde? O pensamento lhe surge de um lugar mais honesto. É preciso seguir até às 18h. Voltar pra casa. E, com sorte, de novo sentir algo bom: o conforto do sofá antigo, o silêncio da casa vazia ou a lua amarelada entrando pela janela. Ou só sentir aquele alívio do desprazer.
Chega na loja e veste o sorriso como quem veste parte do uniforme. Um sorriso cansado, quase automático. O corpo já sabe o caminho até o balcão, os gestos repetidos de abrir a porta, acender as luzes, ajeitar os produtos. Tudo milimetricamente igual ao dia anterior. O mesmo dia, só que diferente.
Os primeiros clientes entram e ele responde com a cordialidade que aprendeu a sustentar, mesmo nos dias em que tudo o que queria era silêncio. Ou sumir. Ou só dormir mais um pouco. No fundo, ele se pergunta até quando esse roteiro vai se repetir. Mas também não sabe com que passos sair dali. Até quando essa vida se vive sozinha, sem pausa, sem cor?
Entre um cliente e outro, arruma o estoque. Organiza a vitrine com um cuidado quase excessivo, medindo distâncias entre os objetos, alinhando rótulos, passando o pano onde nem poeira havia. Se ocupava não porque precisasse, mas porque era um tipo de fuga. Um abrigo silencioso onde não precisava sorrir à força, nem fingir entusiasmo, nem explicar o cansaço.
Ali, entre caixas e cheiros de papelão, podia respirar sem pressa. Era um tipo de esconderijo. Na verdade, ali ele era só ele. Quieto. Meio torto. E talvez um pouco triste. Meio inteiro.
Gostava do silêncio do estoque. Do som abafado da rua, das prateleiras estáticas, do tempo que corria diferente. Às vezes, esquecia do relógio. E por alguns minutos, não era vendedor, filho, amigo, adulto funcional. Era só alguém tentando não desmoronar. Organizando as coisas por fora na tentativa de se entender por dentro.
O final do dia vinha como um alívio. Um aceno desatento para os colegas e saía com pressa. Sem olhar muito, sem querer conversa. Pegava o ônibus de volta pra casa, fone de ouvido, uma música qualquer, daquelas que não machucam, mas também não curam. Só preenchem o silêncio.
No trajeto, olhava pela janela sem ver nada. As ruas passavam como os dias: iguais, meio borradas. Pensava em nada e em tudo. Na vida que pesava. No tempo que escorria. No tanto que ele precisava se segurar para não deixar transbordar.
Chegava em casa e abria a porta com pressa, como quem quer se livrar do mundo. Se jogava no sofá, sapato ainda no pé. Cansado. Não do trabalho, mas de ser. De tentar ser. De ser o que não era.
Ali, sozinho, podia enfim desmanchar. O corpo afundava no estofado velho como quem volta para o que é real. Suspirava fundo. Não precisava sorrir. Nem responder. Nem agradar. Era só ele com o cansaço. E, estranhamente, isso já era alguma forma de paz.
Era um peso. Mas agora um peso sozinho. Sem testemunhas, sem plateia, sem cobrança. Um peso íntimo, silencioso, que pedia apenas que continuasse a respirar. Sem pensar em nada. Muito menos no dia seguinte.
Naquelas horas em que o mundo lá fora parecia distante, ele se permitia existir sem forma, sem função, sem nome. Só um corpo exausto tentando não desaparecer. Sentir o peso da repetição dos dias sem sentido era sua constante. Um tédio melancólico que se disfarçava de rotina.
"É preciso imaginar Sísifo feliz", dizia o filósofo. Mas ele não conseguia. Não por falta de leitura ou sensibilidade, isso ele tinha de sobra. Era por dentro que o bloqueio se erguia. Um muro invisível entre a ideia e o sentir.
Ele até compreendia o que aquilo queria dizer: encontrar algum sentido na repetição. Ser maior que o absurdo. Sorrir, mesmo empurrando a pedra todos os dias. Mas e se a pedra fosse ele mesmo? E se o que precisava ser arrastado fosse a própria existência, pesada demais para a alma já cansada?
No fundo, ele queria. Queria muito poder se imaginar feliz. Queria acreditar que, mesmo nesse giro infinito entre acordar, trabalhar, voltar, deitar, havia alguma poesia que ele não entendia bem. Que no café amargo, na música triste, no silêncio do sofá, existia algo mais do que só sobrevivência.
Sísifo não era feliz, mas talvez, acreditasse em algo que ainda não havia vivido. Talvez.