Às vezes, nossos discursos internos nos mantêm presos em padrões de evitação. Por medo de nos machucarmos novamente ou de machucar o outro. Porém, é justamente no enfrentamento desse medo que coisas bonitas nascem. Não do perfeito, porque ele é irreal. Mas do possível.
A vida é bonita na construção de um imperfeito que é cheio de coisas que nos mobilizam, encantam, iluminam.
Esperar estar pronto ou a hora certa é adiar a possibilidade de um encontro que pode mudar tudo o que a gente achava que sabia sobre o amor, sobre relações, sobre nós mesmos.
Essa é parte de uma crônica longa sobre uma tentativa de ser honesto mesmo não entendendo muito bem o que tá acontecendo.
.....
— Acho melhor eu já começar pedindo desculpas...
Ela olha sério para ele. Está pronta.
— É que... enfim, eu pensei muito. E quando eu falo muito, não é tipo uma ou duas vezes. Eu realmente pensei. Tentei organizar tudo aqui dentro antes de te chamar, até porque eu não queria que parecesse impulsivo. Embora, de certa forma, tenha sido... mas não no sentido irresponsável. É que às vezes, quando eu fico racional demais, as coisas ficam esquisitas, e aí eu me perco no que é sentimento e no que é só precaução...
Ele mexe no cabelo. Toca no celular em cima da mesa. Evita olhar direto pra ela.
— E talvez eu tenha sumido. Sim, eu sumi, de novo. Mas não por mal. Foi tipo... um processo. Eu sei que não parece processo pra quem tá do outro lado, parece só abandono. E eu não tô tentando justificar, nem pedir que você entenda tudo, só tô tentando... explicar um pouco do que aconteceu comigo. Desse jeito... não sei se dá pra entender...
— E olha, eu pensei em várias formas de dizer isso. Pensei em não dizer também. Mas aí percebi que ficar calado não resolve nada. E que, às vezes, eu espero demais a hora certa e ela nunca chega. E aí eu me perco entre "quero resolver isso" e "melhor não mexer pra não estragar mais." Só que eu fiquei pensando em você, em como dizer... E aí... eu chamei.
Pausa. Ele finalmente olha pra ela.
— Eu não tô esperando que a gente volte a ser o que era. Nem sei se a gente era alguma coisa. A gente sempre foi meio quase, meio interrompido... até porque eu não sei, eu fiz tudo errado. Sei lá... Mas se tiver alguma chance, mínima que seja, de a gente ser alguma coisa nova… ou pelo menos encerrar o que foi sem mágoa...
— Enfim. Se nada mais der certo, pelo menos eu conheci o Chantilly. Mas... se puder dar certo, de alguma forma, se eu puder mostrar que tô tentando ser um pouco mais claro, um pouco mais presente, um pouco mais decente, mesmo ainda sendo meio bagunçado por dentro, já valeu.
Sorriso leve disfarçando o nervosismo. Ombro levantado tentando parecer casual. Mas com o orgulho ali no chão...
Ele terminou o monólogo quase sem ar. Estava levemente suando. O orgulho, a racionalidade e a esperança se debatendo dentro dele como se tivessem entrado juntos numa sala muito pequena.
Ela não respondeu de imediato. Só olhou. Aquela pausa que dizia: eu ouvi tudo mas também não vou te deixar confortável tão fácil assim.
Ela queria não amolecer tão rápido. Mas sempre ficava fraquinha quando ele tentava de verdade.
O silêncio durou uns segundos. Aí ele pegou o hashi, mordeu um pedaço do kimchi… fez uma careta discreta, olhou pra frente e soltou:
— Tá muito picante esse kimchi, né?
Foi tão fora de contexto, tão típico dele, que ela não segurou a risada.
— Você acabou de fazer uma confissão emocional e sua fuga é o kimchi?
Ele deu de ombros, sorrindo sem graça:
— É que… bom, tava forte mesmo. E eu já falei demais hoje.
Ela riu. Ele também.
E por um instante, entre a entrega difícil em palavras sem fim e o alívio da risada deles, parecia que o coração tinha encontrado um lugar seguro pra respirar de novo.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Não de quem não tem o que dizer, mas de quem está escolhendo as palavras com cuidado. Pegou a xícara de matcha, deu um gole lento. Olhou pra ele.
Chantilly, alheio à complexidade humana, dormia no colo dele com a língua de fora e uma paz que nenhuma terapia conseguiria explicar. Ela passou a mão devagar no cachorro e, olhando pra ele, começou:
— Doeu, tá? Do jeito que você falou... do jeito que você foi embora... do jeito que ficou tudo suspenso... um fim do que nem havia começado. Eu fiquei com meu coração na mão sem saber o que fazer com aquilo. E foi difícil lidar com isso sozinha. Foi difícil esperar sem saber se tinha algo pra esperar...
Ele ia dizer algo, mas ela levantou um pouco a mão. Não pra interromper, mas como quem diz: calma, deixa eu terminar.
— Eu entendo que você tem o seu tempo. E agora eu entendo melhor que você tem um certo... delay emocional. Que às vezes você sente, mas não sabe o que fazer com o que sente. E que aí você pensa, racionaliza, organiza, se afasta, analisa e só depois volta. Quando já parece tarde... mas ainda assim volta.
Ela sorriu. Um sorriso doce, firme, sem mágoa. A mão ainda no pelo de Chantilly, que ronronava leve no colo dele.
— Eu não esperava esse encontro. Não esperava essas palavras. Mas agradeço por ter me chamado pra conversar. Por você ter vindo. Por ter dito tudo isso. Eu não sei o que vai ser... Mas fico feliz de você falar sobre isso... Fico feliz por você também querer que sejamos algo.
Ela fez uma pausa.
— Tá tudo bem não saber exatamente o que dizer. Tá tudo bem não ter feito tudo certo. Eu não queria alguém perfeito. Só alguém que estivesse aqui, com intenção, de verdade.
E, naquele momento, ele entendeu que não era sobre ser perfeito ou acertar sempre. Era sobre fazer o melhor com o que se tem no momento. Sobre construir junto.
Mesmo imperfeitamente.
Talvez fosse só um reencontro.
Talvez fosse o começo.
Mas, naquele instante, era o bastante.