Tu m’as traversé.
Atravessar é fazer do encontro entre realidade e desejo, entre o que é e o que se quer, algo que não destrói o ego, mas o transforma.
Não para anulá-lo, mas para integrá-lo, para torná-lo capaz de se reconstruir a partir do que foi tocado.
Porque a ideia do outro é também a ideia de si.
Nos limites, nas necessidades, nos desejos e nas potências que se revelam quando alguém chega.
O outro é a intenção que retorna.
Aquilo que vejo no outro, e desejo, é também meu porque diz de mim.
Esse texto foi escrito na tentativa (e sempre são tentativas) de validar os atravessamentos do outro em mim, da fantasia que o outro desperta, mas que, uma vez nomeada e organizada, me dá dimensão de quem sou.
É a fantasia que me situa. Que me inscreve na realidade com mais verdade. Porque o que atravessa, se bem olhado, não me tira de mim: me devolve.
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Atravessar é então, não respeitar as barreiras impostas e seguir em frente, assim, rompendo as muralhas, enfrentando as barricadas, contendo a imensidão de defesas construídas pelo outro, sem esforço.
Atravessar é então, apenas ver uma brecha, no tempo, no espaço, naquela distração entre um sorriso que desarma e a fala boba de depois e entrar, sem aviso, no campo emocional do outro.
Atravessar é seguir além do limite que diz: cuidado. E, sem aviso e sem cuidado, pisar na grama verde que ainda está nascendo naquele de campo de coisas que o outro tá tentando cultivar sem bagunça.
Atravessar então é, sem palavras colher as flores que o outro plantou, atento e cuidadoso e fazer daquele jardim morada, sem querer.
Atravessar é estar no lugar certo, na hora certa, com a pessoa certa e totalmente desarmado por um instante. O instante em que o outro num gesto simples, numa palavra boba, uma piada sem graça ou um conjunto de coisas faz tudo então, fazer sentido. Invade, com delicadeza, os sentidos, sentimentos emoções e pensamentos.
Quando a gente percebe, já foi atravessado. Sem barulho, nem anúncio, nem promessas.
Só um gesto pequeno, um olhar demorado, uma palavra fora de hora.
E pronto.
O outro entrou.
Não porque quis, talvez nem soubesse, mas porque havia espaço.
Um canto quieto, fértil e ainda em construção.
E ali, mesmo sem querer, eu fui atravessada. E floresceu algo de mim, em mim, por causa do outro.