Há uma vida que a gente imagina nos silêncios, entre o cheiro de café e a esperança morna de um dia comum. Ela não chegou, mas insiste. Mora nas frestas do que foi adiado, nos detalhes que não se cumpriram, nos encontros que quase aconteceram.
Lacan dizia que o desejo nunca se realiza por completo. Ele se repete, se desloca, se reinventa. Desejamos o que nos falta, e é essa falta que nos move. Por isso, seguir em frente não é desistir, é reconhecer que algo em nós continuará sonhando, mesmo que o mundo lá fora pareça suspenso.
Seguir é continuar desejando. É amar de novo, com outra pele e outro tempo. É acreditar, mesmo com medo. É escrever a vida nos pequenos instantes que já existem: o gato no sofá, a música no banho, a flor no vaso.
A vida que não aconteceu ainda pode acontecer. De outro jeito. Numa nova estação.
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Gosto do gosto das palavras não ditas
mas não daquelas que nascem do amargo
dos corações perdidos.
Gosto do gosto agridoce
da esperança do que virá,
das palavras que brotam em silêncio
entre pensamentos e desejos escondidos.
Gosto do gosto dos gestos latentes,
que param antes de acontecer
porque carregam o sabor suave
dos segredos revelados no olhar.
Gosto do gosto do que ainda não tem nome,
mas provoca promessas sutis,
com cheiro e forma de flor
num vaso sobre a mesa,
num dia de sol, de outono.
Gosto do gosto da vida
sendo escrita sem pressa
nos detalhes desimportantes do dia:
o gato se espreguiçando no sofá,
a música que escapa do banho,
o cheiro de café no ar,
a risada boba antes do sono.
Gosto do gosto das coisas que eu sinto...
e que talvez, só por isso, já existam.