*"não ceder de seu desejo" (Lacan)
Esse texto nasce do ponto cego de muitas histórias: o momento em que a vida começa antes do desejo. Sob um viés lacaniano, ele percorre a travessia de um sujeito que, desde o início, foi lançado num mundo onde não havia lugar simbólico para ser. A relação com o outro, nesse caso, a mãe, está marcada por uma negação que fere, molda e silencia. Mas também revela algo importante: o movimento de resistência silenciosa, onde o sujeito, pouco a pouco, se arrisca a desejar. Não o que o outro deseja, mas o que brota de dentro, como pequena subversão, como semente de vida real. Esse é um texto sobre a falta, o corpo real, o olhar castrador e, sobretudo, sobre a ousadia de sobreviver sendo.
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Ela passava os dias tentando não errar.
A verdade é que já se sentia errada só por tentar não ser quem era. O desconforto era tão grande, que se sentir bem na própria pele parecia impossível.
A mãe falava mal do seu cabelo, do jeito de se vestir, dos doramas que assistia.
Não havia espaço pra ser.
Às vezes, era gorda demais. Às vezes, magra demais. Mas nunca, nunca (!) no peso certo.
O peso certo de existir com leveza, vestida de si mesma, não existia.
Às vezes, acordava já medindo os passos, equilibrando o som para não fazer barulho. Respirava devagar, como se assim pudesse aliviar o peso de existir, não por si, mas pelo outro.
A gravidez da mãe não havia sido planejada. E parece que ali, no instante do positivo indesejado, sua vida começou do avesso. A negação inicial virou marca: uma negativa à própria vida.
Mas ela ainda não sabia. Ainda não. Que a vida não era sobre o desejo do outro. Porque ela era o real, o corpo real, que impedia a concretização da fantasia alheia.
Ela era real. E dentro dela, algo aprendia, devagar, a se permitir ser desejante também.
Por isso, às vezes, recusava à mãe o poder sobre ela. Vestia-se como queria. Ouvia a música que amava no fone de ouvido. Bebia um gole a mais de vodka com os amigos. Frequentava os bares gays da cidade.
Ela seguia um caminho improvável. Dentro de uma casa inanimada, de um afeto que não fertilizava mas matava, pouco a pouco.
Improvável. Mas ela sobrevivia. Passo a passo, nas pequenas subversões que se permitia. Na subversão de ir, aos poucos, se descobrindo sendo.